O oposto do Kitsch

O oposto do Kitsch

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Hannah, Martin, Kostya e Anna

Estetizamos a razão cínica logo após esfacelarmos a essência e as grandes narrativas. Massacramos o espírito. Quem falaria de espírito ainda? Hannah Arendt? The last one, and the brave one? Ela tinha que acreditar no espírito, como eu, porque amava o negativo, como eu. Seu negativo Heidegger compactuava o amor com palavras turvas às suas. E era como dizer: "só pode ser assim o amor quando filósofos resolvem sobreviver à guerra".

Mas o que não sobreviveu foi a filosofia. Ela foi destruída para sempre e seus meios foram incendiados como um Alexandria transparente que habitava entre as nações.

Os dramas de guerra são sempre deselegantes.

Hannah passou então a dizer que era uma cientista política, e nunca uma filósofa. Ela o fez porque queria tomar distância de Martin, que ficou esperando o som da artilharia baixar, sentado em meio à clareira, com os sentidos alerta... Tentava escutar se a guerra havia acabado, e estava com muito medo nessa hora, que todo o seu castelo desmoronasse, e que tivesse de olhar o mundo com uma vista fraca e dócil.

Sentado em meio à clareira, só e desconcertado, nem o som muito sutil dos troncos escuros crescendo conseguia afagá-lo. Martin fora deixado para trás enquanto Hannah resolvera seguir com a vida ordinária. Preferira a cidade, a luz elétrica e a água encanada ao campo e à floresta negra alemã.

Sua tarefa agora era restituir o espírito. Ela entendia quando estava só: "será que devo me disfarçar?"

E logo em seguida passaram a falar de memes, de construção, de relativização e finalmente desconstrução. Ela não aceitava que quem estava caindo era o espírito. Que ele deixava de existir, porque assim devia ser.

Lembrou de Konstantin Dmitrievich Levin. Nosso personagem favorito de Tolstoi, e que deveria dar o título ao livro no lugar da infeliz Anna. Suas últimas linhas: "A minha vida não estará mais a mercê dos acontecimentos, cada minuto da minha existência terá um sentido incontestável. Agora possuirá o sentido indubitável do bem que eu lhe sou capaz de infundir".

O maior filósofo da Rússia celebrou o espírito metafísico que foi embora para sempre. O que era existir com ele? Hannah deixou isso posto no ar. Provavelmente muito reconfortante. Mas hoje tem sido como Anna Karenina, ela foi a última aparição para Heidegger antes de morrer. Como a piada que contava para si antes de se lançar sob o trem.

Kareninna era uma profeta. Seu espírito passou a povoar o negativo na geração Beat, também entre jazzistas, alguns comunistas latino-americanos e até coisas muito feias como o Heavy Metal. Mas ninguém sabia. Todos os viciados do século XX tiveram como Heidegger a aparição de Ana antes de morrer. Eles entendiam que algo essencial sobrevivia abafado em seus corpos.

Dar voz à metafísica é a razão invisível da morte por overdose.

quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

O retrato dos homens com os felinos


Alguns invisíveis das interações entre humanos podem ser isolados. E aqui só serão isolados com o objetivo de permanecerem obscuros e deixarem remanescer a sua beleza - o que há de mais importante na vida, volto a dizer, e só o que permanece de fato. Esse isolamento, que é de uma ciência escassa mas já muito válida, pinta retratos da existência por meio de técnicas como o tenebrismo: o confronto entre pontos de luz e as partes das trevas.

Um dos invisíveis mais interessantes que oferecemos esclarecer é o da bioquímica do instante em que o olhar da mãe burguesa cruza com o do filho gay. Esse dia muito estranho e muito recente na história dos homens guarda uma química tão complexa, que não se pode ainda catalogá-lo enquanto sublime, melancólico ou naturalista. Mas existe uma recorrência que contarei, e que só se torna possível perceber quando estamos sob o efeito de pelos de gato enganchados no nariz ou pelo menos o seu cheiro impregnando o ambiente. Então, vale esclarecer de antemão, não irá perceber essa biologia qualquer pessoa que não tenha um felino por perto.

O valor de "oráculo" dos gatos e todo esse universo de superstições que os rodeia faz sentido dentro de um quadro estrutural científico, mas isso é assunto para outro post. O que importa dizer é que, se um filho resolve dizer para a mãe que é gay e não houver uma atmosfera felina (ou gatuna) por perto, provavelmente aqueles em torno não observarão que nesse exato momento algumas estruturas corporais são automaticamente liberadas, com mais ou menos potência.

Elas serão uma glândula pineal secreta que interliga o pênis ao ânus e que somente os homossexuais masculinos possuem e uma estrutura azulada no lóbulo frontal, que tornará o seu sensor estético mais sensível que o de outros homens. Enquanto isso, nesse cenário muito específico, em que se juntam um gato, uma mãe burguesa (e não de qualquer outra classe social) e um filho homossexual ligeiramente afeminado, andrógino ou mesmo quasi-travesti (isso importa dizer), a mãe dilatará sua pupila para sempre, para um diâmetro-a-mais quase imperceptível e desenvolverá um estrutura cerebral que pode se localizar no lóbulo frontal ou no lóbulo occiptal. No caso do primeiro, sua tendência será sempre para a ratificação da conjunção simbiótica com o filho e uma identificação entre os dois insuperável. Mas no caso da mutação da segunda estrutura - e este é quase um segredo mortal - a mãe desenvolverá um sentimento ambíguo de auto-flagelação e amor que ela poderá disfarçar, mas que provavelmente será a causa de sua morte. O que mais uma vez só se poderá perceber se houver um felino na casa.

E nessa estranha paisagem, em que o gato é apenas uma ferramenta, uma umidade tomará conta do ambiente por quase um dia inteiro, e aquele estranho mal estar, que é sublime por guardar uma implacável ânsia pela potência e pela liberdade sem fim, e que é melancólico por reestabelecer uma despedida dentro do lar que era "estável", e que é ainda naturalista, lá no ínfimo, porque a "criança" despertará espaços do corpo para novos prazeres numa expectativa turva e esquisita, uma forma de beleza tão nova quanto provavelmente desagradável terá demarcado seu território.

Agora há um mundo adiante e todo homem é adolescente.

"if we're going to die anyway, I'd rather die fighting"