O oposto do Kitsch

O oposto do Kitsch

quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

A queda da casa de Usher II




As narrativas da decadência talvez sejam as mais mórbidas porque evidenciam o inevitável da simplicidade. Quando resolvemos ser simples é porque estamos dispostos a deixar de lado todo o esforço que pende para a experiência sublime: a elegância, a complexidade, os enunciados que traçam um apavorante percurso em meio ao caos, e finalmente o próprio caos assustador que acaba gerando um sentido elevado.

As moradas chegam ao fim quando a simplicidade toma cada cômodo da casa. Quando os vínculos se tornam simples e duros e as paredes começam a descascar, o assoalho a ranger e sorrisos de vapor se formam do lado de dentro da janela. Na dispensa já não há nada além de estoque e as palavras se encaixam perfeitamente em frases ditas para serem respondidas: "bom dia e alô".
Jó sofreu todas as provações do mundo, mas não deixou sua alma secar, Maria Antonieta curvou-se diante dos súditos e viu que tudo havia desmoronado. Usher confundia os galhos das árvores com garras que queriam sequestrá-lo. Nessas casas, poucos sabemos, aconteceu tudo o que acontece em toda a casa que desmorona: falta luz antes de tudo e quando dormimos, sem que percebamos, perto já do próximo amanhecer, uma misteriosa chuva de granizo fere o telhado por quase cinco segundos.
É o som da decadência de um lar: a ciência que deu lugar aos espíritos, a vontade de saber que deu lugar à mágica, a experiência que abandonou de vez a teoria.
Nos impérios antigos tocávamos fogo em sedes condenadas ao fim. Em nossas casas, esperamos que alguém resolva deixar o lar, para só então um vento muito gelado soprar e uma nuvem negra pousar em cima de casa, como na Família Addams.
A vida do espírito torna-se religiosa e perde toda a filosofia assim. O poder combinatório que orienta nossos equívocos passa a ser confundido com um mal que parece substrato metafísico. As árvores se afastam com o cheiro de afetos mortos e a única solução que você encontra para tudo, mais simples e por isso mais estúpida é finalmente a frase: "tenho que ir, aqui não vivo mais".
Solitário como um imperador romano, e menos trágico talvez, seguirei mudando, até o dia em que meu corpo se converterá à religião dos espíritos tortos de dias que não voltam enquanto dívidas morais permanecerem arraigadas ao solo imaginário do amor que decaiu.
A casa de Usher caiu pela segunda vez. Chamamos o exorcista, mas éramos todos hereges e felizes, e não escutamos quando salientou que ali se travaria uma guerra em que dificilmente alguém escaparia ileso.
A guerra tomou início, mas tem data e hora para acabar

sábado, 25 de dezembro de 2010

A minha vida antes de mim.




A única coisa que o interessava e só o que lhe aplacava
o espírito era estar perto de qualquer planta ou um vaso de xaxim


Sabemos todos que o golpe do que nos toma a força é o que põe em cheque a capacidade de auto-apreciação. Não há uma solução, e o desastre é iminente. O sentimento de certeza tende sempre ao seu próprio fim. A tensa preocupação com os tons, estilos e jogos de luz e sombra que regem o percurso - o que há de mais importante afinal - refletida em unhas carcomidas, pedaços do corpo fugindo pelo casco cabeludo, ou um jeito de se postar a frente do espelho, mórbido e estranhamente em outra dimensão, é o que torna necessário o isolamento.

O dia do isolamento, como o dia da tristeza, ou aquele em que tudo tende ao sublime (este último o melhor dos humores) é a defesa ao esfacelamento da estética da existência, a sua carga que se torna insuportável, a economia de libido que demanda, e que pode ser violentamente restritiva como o cerco a Leningrado.

E esses dias especialmente, que podem se dar a despeito da presença acolhedora de seus amigos, de seus pais ou de seu magnífico amante-outra-vez-passageiro, serão dolorosamente vividos, a não ser que exista por perto uma combinação físico-química cientificamente comprovada em laboratórios de Varsóvia: a presença suntuosa de uma árvore ou de um jardim muito úmido, num tom esverdeado escuro, e a aproximação de seu corpo com a madeira viva ou com um vaso de xaxim.

O úmido árboreo é o bálsamo mais eficiente para o doloroso e apropriado dia do isolamento. Dia apropriado porque isola a normalidade e traz a tona o que possivelmente acreditávamos morto e sepultado. Nesse dia heiddegeriano especialmente, você pode ter uma imagem de si daqui a dez anos, saber que aquele seu corpo o perseguirá até lá e ter o close up de seu rosto levemente envelhecido, mas muito digno. Algo como: "Baden Baden, Alemanha, dez anos depois".

Seu rosto ali, marcado, isolado no meio da multidão, só, porque não há como escapar da solidão de uma estética perfeita, e seu corpo dono outra vez do controle, através da bucólica conexão com um xaxim... Mais ou menos o que pressente um epiléptico antes do episódio convulsivo ou o espelho perfeito de si mesmo que visualizamos durante a experiência hiper-consciente do dejá-vu.

A partir desse dia, os afetos tornam-se mais uma vez manipuláveis, contraste da sombra (ou da luz) com o som que só as árvores emitem. E se nessa hora você projetar sua sombra, que é mais fácil, ou a sua luz - o que é um grande sacrifício pra qualquer um - sobre quem quer seja, dessa coisa poderá arrancar um afeto elegante: o mais valioso tesouro da experiência superior. Se a esta ação, associo um tom melódico, que pode ser tanto minha voz, quanto substâncias de expressão muito primitivas, posso obter o resultado assombroso muito semelhante à fruição com uma obra de Desiree Dolron.

Minha presença passa a ser extática por dois segundos quase.

In the secret garden lies my death and the erotic energy of my body.